terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Padre Cícero: biografia vai ao Vaticano e ao cinema


Em Juazeiro do Norte (CE), é possível comprar nas feiras de rua pequenos bonecos com a imagem do adorado Padre Cícero fabricados na China: eles cantam ao apertar de um botão. Sim, o padre é pop. Mas ainda busca redenção junto à Igreja, 75 anos após sua morte. Cícero foi afastado da hierarquia católica ainda em vida, em 1892, após uma polêmica envolvendo supostos milagres em Juazeiro. A tarefa de reincoporá-lo à tradição acaba de ganhar reforço de uma biografia, Padre Cícero - Poder, Fé e Guerra no Sertão (576 págs., 49 reais, Companhia das Letras), escrita pelo jornalista cearense Lira Neto. O livro chegará às mãos do papa Bento XVI pelo bispo italiano Fernando Panico - o exemplar já foi autografado pelo autor. "Mais complicados serão os passos que se seguirão: uma posterior beatificação e uma consequente canonização", explica o autor. O livro vai ainda virar filme, a ser dirigido por Sérgio Machado, de Cidade Baixa. Não se trata de uma novidade para Lira Neto. Afinal, outra trabalho dele, a biografia Maysa - Só numa Multidão de Amores, serviu de base para a série da Rede Globo, exibida neste ano. Leia a seguir os principais trechos da entrevista com o escritor.
O senhor firma posição sobre os supostos milagres que o Padre Cícero teria feito em vida no Cariri, quando hóstias pareciam se transformar em sangue na boca da beata chamada Maria de Araújo?Acho que não dá para definir o Padre Cícero com uma resposta simples, não dá para colocá-lo num escaninho, como muitos tentaram fazer, e chamá-lo de santo ou impostor. A pergunta que ecoou durante toda a pesquisa e redação do livro foi justamente essa: afinal de contas, quem é esse homem? Eu acho que ele é um personagem interessante e rico do ponto de vista biográfico justamente por ser cheio de ambivalências e contradições. Eu não sou uma pessoa religiosa, mas me surpreendem e arrebatam aqueles acontecimentos do Cariri, para os quais nem os comissários do bispo chegaram a uma decisão definitiva [quando os supostos milagres se tornaram conhecidos, o bispo do Ceará, dom Joaquim José Vieira, enviou dois clérigos ao local, para verificar a veracidade dos fatos. À luz de toda a documentação produzida pela própria Igreja e à luz do que foi escrito por Padre Cícero em cartas, o que posso dizer é que algo inexplicável aconteceu. Eu não acredito em milagres, mas houve ali alguma coisa que continuará provavelmente sem solução.
Para que Padre Cícero seja absolvido pela Igreja, é preciso que o Vaticano reconheça os supostos milagres envolvendo a beata?
Não. Como Cícero, depois de suspenso, obedeceu a ordem de silêncio e não falou mais sobre a questão do milagre, a absolvição precisa apenas do reconhecimento de que o processo de que ele foi vítima pode conter falhas. E também o reconhecimento de que Cícero é uma figura que provoca conversões e aproxima as pessoas da fé cristã. Mais complicados serão os passos que se seguirão: uma posterior beatificação e uma consequente canonização. Mas, também para que ele seja declarado santo, não é preciso reconhecer os milagres ligados a Maria de Araújo. É preciso apenas atestar que algumas pessoas alcançaram milagres por interseção dele. E isso é o que mais tem em Juazeiro do Norte. Basta entrar na Casa dos Milagres para ver milhares de ex-votos e depoimentos de graças alcançadas.
Padre Cícero se aliou a Lampião contra a Coluna Prestes. Por que ele temia Prestes?
Na verdade, quem temia a Coluna Prestes era o governo federal. A ordem para que os líderes regionais e locais arregimentassem milícias, e até mesmo jagunços e cangaceiros, para fazer frente a Prestes foi ideia do Ministério do Exército. O Padre Cícero, como líder político em Juazeiro do Norte [após a suspensão de suas atividades sacerdotais, ele viria a se tornar o primeiro prefeito da recém-emancipada Juazeiro, enveredando pela política], entendeu que, se era para formar milícias convocando cangaceiros, nada melhor do que chamar o maior deles. Ele não fez nada mais nada menos do que dar prosseguimento a uma política federal.
Com cinco biografias publicadas, o senhor ainda sente falta das redações de jornais?Às vezes, dá saudade. Mas desde que eu vim para São Paulo - eu morava em Fortaleza até 2001 -, tinha o firme propósito de desenvolver uma carreira solo, vamos dizer assim. Fiz e faço free-lances para compor o orçamento, mas cada vez mais vivo - ou sobrevivo - dos meus livros. Depois de cinco biografias, você consegue sentar à mesa de um editor e negociar condições favoráveis de trabalho, que permitem contar com adiantamentos de direitos autorais, pagar o aluguel em dia e fazer a pesquisa de forma adequada. No caso de Padre Cícero, me dediquei a ele de forma exclusiva por dois anos e meio. Padre Cícero me alimentou por dois anos e meio.
O escritor Ruy Castro declarou recentemente que o biografado ideal é aquele que esteja morto há pelo menos dez anos, que não tenha filhos, que seja solteiro e, de preferência, tenha sido "brocha". Padre Cícero se encaixa em pelo menos boa parte dessas características. O senhor é da mesma opinião de Castro?
Eu concordo com ele. Acho que o biografado bom é biografado morto. Biografar vivos implica alguns riscos. Um deles é o risco de o biografado resolver barrar o seu trabalho. Outro problema é que é uma existência não acabada, não completa, é uma vida em processo. Vai que o sujeito aos 70, 80 ou 90 anos resolve fazer alguma coisa que nos obrigue a refazer todo o trabalho. Então, eu prefiro esse distanciamento temporal. E a questão dos herdeiros também é complicada. A gente tem exemplos de herdeiros que barram biografias. No caso do Padre Cícero, eu não tinha esse problema do herdeiro, mas tinha uma outra coisa que era tão delicada ou até mais. Se ele não teve filhos, produziu uma legião de devotos. Eu não sei ainda como eles vão receber esse livro. Não creio que eu tenha feito uma obra de desconstrução do personagem, mas também não fiz um livro de louvação. E boa parte da biografia existente sobre o padre oscila entre esses dois extremos.

Fonte: Editora Abril.
Thiago Aguiar

Nenhum comentário: